Carisma - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM 1h2p16

Festa de São Francisco. Celebração da Pobreza. 67t2z

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Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

A  conhecida Editora Albin Michel, em sua coleção Spiritualités  fez aparecer um texto sobre as celebrações cristãs  (Célebrations chétiennes,  Albin Michel, Paris  2004), escrito a muitas mãos. Inspiramo-nos no texto Célébration de la pauvreté. Regard sur saint François  de  Xavier Emmanuelli  (p. 211-232)  para escrever  esta página franciscana.

A muitos olhos (e ouvidos)  pode parecer  paradoxal querer celebrar a pobreza. Uma tal empreitada parece paradoxal e quase que uma provocação mórbida.  Não é possível fazer elogio algum da infelicidade e do infortúnio.  Existe uma pobreza inglória que está à nossa volta e que se  procura esconder a todo preço. Pessoas que vivem ruína e perda. Perda da dignidade elementar, ferida e que faz desaparecer a imagem do ser humano.  Esses miseráveis vivem nas ruas e calçadas, sob as pontes e em espaços desocupados.  Cada dia um sofrimento, cada noite uma dor. São forçados a mendigar o necessário para sua subsistência, procurar um abrigo para dormir, sempre de novo  buscar sua sobrevivência alimentar, todo dia, a toda hora.  Sujos, fétidos, homens e mulheres com uma ponta de cigarro no canto da boca, recolhida da rua e “devorada” até o fim, quase comendo papel e tabaco e queimando os lábios. Há os enlouquecidos que falam sozinho. Gesticulam no tétrico teatro da vida, tragédia da vida. Gente criada à imagem e semelhança de Deus.

Uma tal pobreza tem um nome: solidão. As pessoas falam, “se falam”, se reúnem, talvez chegam a rir umas com as outras, mas todo liame verdadeiramente  denso e humano desapareceu.  Não há sentido  em se falar de laços afetivos, amicais e amorosos que fazem viver e permitem que se construa uma história. Estes não existem, apenas a solidão.  Quem perdeu  a percepção inconsciente de seu próprio corpo, de seu próprio  “eu”,  não é visto por ninguém e nem consegue se ver a si mesmo. Trata-se de um ser apagado, deletado, transparente, simplesmente nada. Claro que existe, mas disso os outros não se dão conta e nem ele próprio. Vive sempre acontecimentos agressivos.

Um homem e uma mulher que entra nesta alienação, nesta “desfiliação” é como uma estrela que desaparece do céu. Um ser vivo e irradiante torna-se um buraco negro.  Tudo que lhe advém do exterior  é absorvido como num poço sem fundo, até mesmo a luz de gestos de bondade.  Em tais condições não se trata de pobreza, mas de perdição. A alma é como devorada pelo nada.  Sobra apenas um corpo maltratado pela bebida, pela fome e à mercê da caridade. Em tempos ados, antes, esse miserável era alguém que tentava falar com sua boca, comunicar através de gestos; agora nem mesmo esta tentativa perdura.  Esse estado é um inimigo a se combater e, de forma alguma, pode ser celebrado.  Sim, não é esta a pobreza a ser celebrada.

Existe, no entanto, uma pobreza que participa de uma outra realidade, uma pobreza que eleva e dignifica o ser humano, precisamente  a pobreza que  Francisco de Assis soube viver e cantar, um santo  do qual leigos e profanos podem se “apoderar”, um místico que não pertence apenas aos cristãos e à cristandade, mas a toda a humanidade. Na verdade pertence a toda a criação porque sua compaixão, seu desejo de comunhão estende-se a toda a natureza.  Um homem de ação  sempre deixando marcas de humildade em tudo o que faz.

Cito literalmente o autor: “Minha mitologia franciscana se constrói  em torno de algumas imagens fortes. O episódio por meio do qual  Francisco é iniciado na pobreza é o dom de seu manto ao pobre cavaleiro  de Roma, que retoma um outro mito cristão: o generoso ato de São Martinho, diante da cidade de Amiens. O beijo no leproso, tão transgressivo, é outro grande momento da vida de Francisco.  O último episódio  é aquele do gesto violento pelo qual ele se despoja, a renúncia aos bens paternos, cena exemplar de seu ideal de pobreza. O último episódio não é,  propriamente falando, um fato, mas a grande oração do Cântico das Criaturas , que acompanha os  últimos anos de  sua vida” (p. 214).

Foi bem aos poucos que Francisco foi dirigindo rumo a uma  grande santidade O dom do manto é, ainda, um episódio hesitante. Xavier  Emmanuelli  vê em Francisco um intrépido guerreiro  capaz de lançar mãos de armas para defender sua cidade. Tendo em mente o ideal de glória e de cavalaria, não encontra um pobre, mas um cavaleiro destruído e arrasado.  Esse cavaleiro é um outro ele mesmo.  Quando Francisco se desveste de seu manto é para ajudar um de seus pares, um dos iguais a ele para restituir-lhe a dignidade de cavaleiro. Nada tem a ver com o gesto sublime de São Martinho que expressa uma ruptura. Neste caso um privilegiado, um oficial dá a um pobre. No caso de Francisco há um cuidado de preservar a dignidade de um igual.

O episódio do beijo no leproso tem dimensão, chocante, perturbadora, inaudita.  Francisco é jovem fino, foi educado no luxo, mimado, cercado disso e daquilo. A lepra é o horror, é a morte que devora a vida a partir do interior, a repugnante imundície que se  apodera da carne. Será que se pode imaginar encontro mais violento, transgressão mais impensável?  Que força irresistível se apoderou do jovem charmoso e distinto para um corpo em decomposição?

Mais uma vez uma citação literal: “Em nossos dias dispomos de tratamentos eficazes para combater a lepra. No tempo de Francisco, a enfermidade não tinha cura, revestia-se de aspectos terríveis e era, de fato,  um flagelo.  A doença consiste na alteração dos nervos sensitivos,  as pessoas machucam-se, abrindo feridas que se tornam purulentas. Perde-se a sensibilidade. Sem contar as lesões próprias à lepra:  a carne se decompõe, os músculos, os tecidos infectam-se constantemente e apodrecem. Quando a putrefação atinge o osso nasal, o nariz desaparece, transformando o semblante do leproso na face de um morto, com a fronte inchada e, no meio, dois enormes buracos, ináveis. Os lábios também são atingidos, bem como as extremidades das mãos e dos pés, deixando tocos de membros… Literalmente a morte mora num corpo vivo.  No tempo de Francisco celebrava-se a missa de enterro de um leproso antes que morresse, o qual deveria redigir seu testamento, porque socialmente já havia morrido”  (p. 216-217).

Como jogar-se nos braços de um cadáver vivo, mas já em decomposição?  Que loucura  de amor é essa de beijar uma boca cheia de  pus? De onde veio  para  Francisco  a força para realizar tal transgressão que separa o nobre do ignóbil, o puro do que infectado, o belo do monstruoso? O leproso que Francisco abraça encarna aqueles que se acham excluídos de qualquer tipo de representação. Seu corpo degradado  não tem imagem,  tornou-se invisível  por não ter sido mais olhado, de ser constantemente evitado.  Quanto menos são olhados,  menos olham-se a si mesmos.

Para os médicos e o pessoal da saúde é sempre penoso cuidar de corpos  dilacerados. Há doenças que causam como que nojo. Francisco, por meio de seu gesto, venceu a repulsa física que naturalmente se  experimenta diante do que repugna, o pânico do sadio diante do insano.  A imensa compaixão de Francisco é escandalosa e subversiva. A compaixão  “faz sofrer com” o outro, o outro que não se escolhe, que está diante de nós, com suas taras, com seus aspectos extremamente desagradáveis. Esse outro é, de repente, escolhido como o próximo  mais próximo, o irmão,  operando uma reviravolta em todas as hierarquias mais  sedimentadas dentro de cada um de nós.  Francisco não manifesta uma  piedade sentimental,  mas é arauto de uma compaixão que implica a ilegitimidade do sofrimento padecido pelo outro, inventa uma fraternidade, na qual todo homem pelo fato de ser homem  tem igual dignidade.

A renúncia aos bens paternos é um acontecimento mais violento ainda, pelo fato de se ter dado num espaço público.

“Francisco, não somente restitui ao pai o que tinha obtido vendendo as peças de tecidos tiradas da loja paterna em vista da restauração da Capela de São Damião. Vai bem mais longe: questiona a autoridade paterna  como nunca tinha sido feito anteriormente.  Devolve-lhe suas roupas, pagas com os recursos familiares, e mostra sua nudez na praça de Assis. Pietro di  Bernadone fica  fora de si.  A nudez provocadora  é imediatamente escondida pelo manto  do bispo.  O símbolo aponta para mais longe.  Francisco renuncia à vida burguesa que lhe estava reservada devido a seu status de filho da família. O que percebe como humildade é tido pelos circunstantes como humilhação” (p. 219-220).

Agora  Francisco podia rezar o Pai nosso.  Seus irmãos e suas irmãs são os que fazem a vontade do Pai.  A partir daquele momento Francisco se considerava nu como no dia de seu nascimento,  e nu estaria no momento de sua morte. A escolha da pobreza radical  é, com efeito, novo nascimento

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